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Águas cruzadas

Ciça Carboni

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Imagem da autora - Jun 2021

          Quando nasci, era azulejo branco e gelado no chão. Não pisei, eu conduzi. Em volta do meu pescoço corria um adereço difícil de tirar, ele me lembrava de onde eu tinha vindo e ao mesmo tempo, apontava onde havia chegado.

 

          A sala aberta, clara e com muita gente, tinha cheiro de ervas molhadas e sangue. Entoavam cantos, batiam palmas, que se cansavam, afinal, éramos muitos ali, nascendo. Molharam o topo da minha cabeça, fizeram suas rezas, firmezas, eu ainda não entendia, se noite, se dia, era limiar, 05h30.

 

          Vestíamos tecido branco e tecido pele, sensível ao toque e comum a cada um de nós dentro daquela sala aberta, senti o primeiro toque e a lágrima já me escorreu, misturada com agua, sangue, com vida e carne. Não era Deus, era religião.

 

          Mas não essa que julgam saber, religião é revisitar, é rever o que já estava lá, mas esquecido, o que não se vê, por escolha, o que não se sente, por determinação. Um dia todos fomos e seremos esquecidos e ali ficamos num repouso adequado, e assim, de improviso, somos chamados, requeridos, lembrados e nos tornamos carne, como as plantas, as flores, os frutos. Por muito tempo vivemos esquecidos de nós, mas vivemos! E fazemos coisas, construímos cabanas, as vezes castelos e proteção; gozamos e sorrimos, comemos e voamos.

 

          Mas um dia eu me vi pisando, com pé já grande, no chão branco e gelado e recebi o segundo toque, caminhei até as imagens, plantei meus joelhos e curvei-me. Minha carne respondeu ao toque da mão no couro e madeira. O relembrado se apresentou; e não era Deus, era religião.

 

          Nascer é encantar-se a qualquer tempo. A brasa recém acesa de um cigarro, pequena luz, que queima! Marca a pele, o chão, começa incêndios, produz jatos de fumaça branca, gera calor e cinzas. E quem tem tecido pele, se sustenta e se encanta. Gira brasa, fumaça, poeira, risca o chão e serpenteia.

 

          Da terceira vez que nasci, o chão era outro. Poroso e úmido, com pequenas ondas que lavavam meus pés, estávamos de branco e pele e éramos luz na escuridão do mar, éramos presentes fincados na encruzilhada oceânica. De cabeça e pescoço enfeitados, nos revisitaram todas as mares, mães e pais.

 

          Na encruzilhada, onde todos e tudo se encontra, terreiro para se rever e refundar outros caminhos, onde a dúvida é bem-vinda e pode ficar, até que uma nova brasa se faça e encante o que é vivo e contínuo. E o que não for, que volte para o fundo do mar.

 

          É que não é religião, é filosofia.

 

          “é doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar...”(Dorival Caymmi)

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Imagem da autora - Jan 2020

Sobre a autora

Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre pelo programa de História Social da mesma universidade. Possui graduação em Comunicação Social (Jornalismo) pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, realizou projetos documentais em linguagem audiovisual, cinema e fotografia; atuou como repórter e redatora em veículos de comunicação e é roteirista. É docente nos cursos de Design , Fotografia e Comunicação Social e pesquisadora no ESPACC - PUC-SP/COS.

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