

Coletânea de poemas:
por uma ciência poética


Monólogo de uma Sombra
Augusto dos Anjos
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras…
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
A simbiose das coisas me equilibra.
Em minha ignota mônada, ampla, vibra
A alma dos movimentos rotatórios…
E é de mim que decorrem, simultâneas,
A saúde das forças subterrâneas
E a morbidez dos seres ilusórios!
(...)
Na existência social, possuo uma arma
— O metafisicismo de Abidarma —
E trago, sem bramânicas tesouras,
Como um dorso de azêmola passiva,
A solidariedade subjetiva
De todas as espécies sofredoras”.
Trecho o poema “Monólogo de uma sombra”, de Augusto dos Anjos, poeta pré-modernista e professor paraibano. Publicou um único livro, “Eu”, contendo 56 poemas. Ganhou popularidade principalmente entre as camadas populares e à divulgação de sua poesia feita pelos poetas e artistas modernistas. Hoje, sua obra é acessível e publicada por diversas editoras sob o título de Eu e Outras Poesias.
De árvores e homens
Teresa Vergani
Feita de tempo e de terra
Feita de rocha e de luz
Gotas de sol e raios de água
Teias de seiva e cascatas de vento
Chamamo-lhe árvore
Estou em crer que não é a brisa
Quem faz mexer as folhas
Mas que é o movimento as folhas
Quem faz surgir as brisas.
Que não é a luz que levanta a flor
Mas que é a flor quem sustenta o sol
E faz abrir as grandes estrelas
Feito de uma onda e tempo
Aninhando numa onda de sangue
Chamamo-lhe homem
Inconcebível eclosão de consciência´
À tona dos múltiplos subjacentes
universos
Tanto a árvore como o homem
Tornam equivalentes palavras como
Perfume, claridade ou duração:
Nomes igualmente estáveis e
transferíveis
Essencialmente úmidos, unos
circulantes
A diferença entre a arvore e o
Homem
É que os homens correm
Enquanto as árvores crescem.
Teresa Vergani. Matemática, teóloga e poeta portuguesa.
Experimento da palavra que pensa
Margarida Maria Knobbe
Onde se escondem
as invisíveis mentes,
os etéreos espíritos?
Será nos espaços infinitos que cabem
nos átomos que nos cristalizam em corpos?
Sonho com as fantasias das plantas
e com o seu hálito de clorofila
a inundar a alma da terra...
Penso que as leis racionalistas
não contém o que de melhor há em nós:
as bifurcações inomináveis
dos nossos sentidos.
Minha consciência apreende,
inconscientemente,
tudo o que vê, toca, cheira, ouve...
Substância viva, nervosa, pulsante
em mutações espontâneas,
“a consciência é um fenômeno da
zona de evolução”, diz Schrödinger.
O acaso me inciviliza.
Porém, esses truques trans-
genéticos,
Perigosamente,
não levam ao caminho da
perfeição.
A ciência condena a objetificar-me
em tudo à minha volta
mas tudo à minha volta
se (sub) objetiva em mim.
Será um mal-entendido?
Que estranha (ir) realidade a da
matéria-mente!
Desafio do conhecimento:
produzimos e somos produzidos
pelo mesmo espetáculo
ao qual estamos assistindo.
Sem imaginação,
ele será sempre o mesmo
repetindo-se ad infinitum...
É preciso despertar meu ser
adormecido nos seus
automatismos,
dar voz à palavra que pensa.
Não quero explicar o mundo.
Quero a fugacidade da
compreensão...
a palavra úmida dos dogon,
a vida simples nos limites entre
o congelamento e a evaporação.
Quero viver e compreender como
Teresa:
lendo o curso das ações
como um processo
que pode ser ficticiamente vivido.
Este é o sentido da vida,
Nas hibridações simétricas
dos nossos quase-corpos e quase-espíritos,
quase-razão, quase-percepção
simbólica:
compreender
através de uma incessante
transmutação
imaginante, gestante,
insubmissa às diferentes gaiolas
onde o pensamento se encontra
aprisionado,
para sentir/significar
a univastidão do mundo.
Este poema foi escrito a propósito dos livros “O que é vida?”, de Erwin Schrödinger (SP: Unesp, 1997) e “A surpresa do mundo”, de Teresa Vergani (Natal-RN: Flecha do tempo, 2003).
Margarida M. Knobbe. Doutora em Ciências Sociais, jornalista, professora e pesquisadora do GRECOM-UFRN.
Sinais
Margareth Tamberg.
Distante viagem à lua
Vista visionária
Virou vaidade
Avatar uma verdade
Falo com Helo, Lu ou Bia
Soft assistants oferecem
Conforto morno
Fake confidentes
Ok, Google?
Temperatura
Pressão
Frequência
Todo dicionário
A ciência salva
Em telemedicinas
E incansáveis serões
Passado e futuro
Evidências e certezas
Hoje diversas saídas emojis
Máscaras e nem é carnaval
O virtual uma ordem do dia
E aquele abraço-promessa
Segue sendo saudade.
Margareth Tamberg. Paulista, formada em Letras pela PUC-SP. Quando deixou de trabalhar no mundo corporativo onde desempenhava a atividade administrativa, pôde se dedicar à escrita de forma criativa. Frequenta oficinas de crônicas e poesias e faz de seu aprendizado uma realização pessoal.
Comunicação:
abismo
entre
palavra e mundo
As máquinas ganham
O que os homens perdem.
Falar a verdade, supõe dúvida.
Desejos:
mapas de mundos invisíveis possíveis.
uma geografia em corpo arada.
Confinamento:
asas doem
pedem céu.
Ana Cecília Aragão Gomes. Jornalista, professora e pesquisadora. Doutora em Comunicação e Semiótica, PUC-SP.
FIM
Michelle Ferret
O termômetro quebrou
Mercúrio espalhado
São as festas que Matilde diz
O amor, talvez
As rupturas todas
Essa febre não passa...
Nem quero.
Para Matilde Campilho
“Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca
Quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles
no chão? Então, acho que o amor quando aparece é em
todo semelhante à forma física do mercúrio no mundo.
Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento
Químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos
Salões de todas as festas” (Jóquei – Matilde Campilho)
Na pele que me guarda
Destravo todas as chaves
Da fenda ao ferro
Da brutalidade em ser carne
Em meio a tanto céu
Penduricalho atirado devagar
Na cara de todo chão
Dessa cidade asfáltica, medrosa, sem flores, foda.
Essa pele perfurada de anzóis
Tem cheiro de maresia e lavanda
Isca vazia dos restos de ontem
Na tentativa inútil de mergulhar logo mais
Em tanques escassos de saliva e vida
Em perfume evaporado
Que ninguém sente
Como essa noite abrupta sem som
Só um ventilador me vela
Acalma a sensação esquisita e ser gente
De saber-se alma
Com os olhos abertos
De quem não dorme, espera
Essa pele
Que me guarda
Tem milhões de espaços desconhecidos
Terminações de dias e nervos
Amontoados de incertezas e delírios
Mesmo quando a febre passa
Ou me toco demoradamente
Como a pedra atirada
ao lado de uma formiga
E ela segue
Sobrevive, ilesa
E nem sonha que ao seu lado
O fim do mundo olha por ela.
Todos os poemas são delírios
Dispensados de analgésicos, opiáceos, banho frio
A vida é quente
Como uma febre
E vai passar...
Poema extraído do livro "Febre", publicado pela Ed. da Autora, em 2020. Michelle Ferret é jornalista, poeta, professora. Doutora em Ciências Sociais.