Como ser cientista no mundo subdesenvolvido, obscurantista e semianalfabeto em ciência?
Humberto Miguel Garay-Malpartida

CEREIJIDO, Marcelino. Ciencia sin seso, locura doble.
México: Siglo XXI de España Editores, 1994.
Nos tempos atuais, quando ouvimos falar em ciência, quase que instantaneamente pensamos em como ela tem sido crucial para contribuir com a solução do problema que tem afetado as nossas vidas de forma tão significativa: a COVID-19. Mas, instantemente também surge uma pergunta que nem sempre queremos responder: será que entendemos, de fato, como se desenharam as pesquisas que demonstraram que as vacinas, o uso de máscaras e o distanciamento social, são as melhores estratégias de enfrentamento a pandemia?
Como cidadãos deveríamos entender, pelo menos basicamente, como a ciência funciona. Mas essa ciência, que está presente nas nossas vidas desde sempre - em todas as atividades do dia a dia, das mais simples às mais complexas - é, paradoxalmente, difícil de entender. E claro, preferimos deixar essa explicação para os cientistas e justificamos que cabe a nós, cidadãos não-cientístas, simplesmente obedecer a ciência, sem questioná-la. Pois foi assim que aprendemos na escola. E, provavelmente, este será o único argumento que teremos para contrapor aos discursos muito bem elaborados dos negacionistas e os pseudocientistas que afirmam que a pandemia é uma fraude, que as vacinas não funcionam e que máscaras não servem para nos proteger do SARS-CoV-2.
Até aqui, parece ser um problema menor. Porém, imaginemos que, na América Latina, essas nossas limitações sejam as mesmas dos gestores das universidades e das fundações que financiam as pesquisas cientificas, dos políticos que fazem as políticas públicas ou daqueles que planejam e executam os orçamentos. Imaginou? Qual seria o impacto disso? E se, ainda mais, essa forma superficial de entender a ciência fosse uma limitação (olhem que absurdo!) dos nossos próprios cientistas? Que tipo de ciência estaríamos fazendo na América Latina?
"subdesenvolvimento não é o prelúdio do desenvolvimento,
mas sua contrapartida necessária, o obscurantismo não é o prelúdio para o desenvolvimento da ciência, mas seu obstáculo mais vergonhoso"
Em seu livro intitulado “Ciência sem cérebro, loucura dupla” 1, o cientista argentino-mexicano Marcelino Cereijido discorre sobre a ideia de que a ciência – no sentido estrito do conceito – é privilégio dos países desenvolvidos, pois os países subdesenvolvidos não estão preparados para fazer ciência. Aponta que os países do terceiro mundo vivemos na miséria pela falta de estrutura técnico-científica-produtiva, a qual por sua vez, não existe porque não produzimos conhecimento científico em grande escala. Afinal, a ciência é o resultado de uma concepção de mundo que nos é alheia. O autor acrescenta que este obscurantismo (produto da ignorância da ciência) se opôs, historicamente, ao desenvolvimento do conhecimento, mas que não é uma questão conjuntural. Conclui que, assim como subdesenvolvimento não é o prelúdio do desenvolvimento, mas sua contrapartida necessária, o obscurantismo não é o prelúdio para o desenvolvimento da ciência, mas seu obstáculo mais vergonhoso.
Ao longo do livro, Cereijido explica como este obscurantismo dificulta fazer ciência nos países sub-desenvolvidos e afeta a formação dos nossos cientistas. Segundo o autor, a nossa sociedade despreza a ciência, porque desconhece a sua essência e a acha distante da sua compreensão, desvinculando-a da construção cultural, e não reconhecendo a sua importância no progresso da humanidade. Todas as formas nas quais a ciência participa da nossa vida diária, desde o uso de aparelhos eletrônicos, o consumo de uma fruta geneticamente modificada, ou remédios para curar as doenças, são quase sempre atribuídas, pelo cidadão comum, ao trabalho de outros profissionais: técnicos, engenheiros, médicos etc., colocando os cientistas num papel coadjuvante.
Por outro lado, observa-se uma ignorância coletiva de que, por trás de todos os conhecimentos científicos que deram origem a parafernália tecnológica que auxilia nossas vidas, existem muitos anos de intensa pesquisa cientifica básica. Por este motivo, os políticos que nos governam (muitos deles sem nenhuma formação acadêmica, e muito menos cientifica) entendem que a ciência não é prioridade para o desenvolvimento econômico e social. Portanto, os recursos que a ciência precisa não representam investimento, mas são um gasto, por vezes supérfluo ou marginal. E se, porventura, o financiamento da ciência for investimento, este deve ter uma retribuição imediata, no curto prazo, cumprindo sempre as “promessas feitas pela ciência”. Como se a ciência fosse capaz de prometer alguma coisa.
"A ideia de que, como sociedade, devemos “apoiar a ciência” (por mais bem intencionado que este apoio seja) ao invés de “nos apoiar na ciência” em direção a um desenvolvimento sustentável, promove o aumento da nossa dependência tecnológica (e consequentemente econômica) e reforça nossa identidade colonial, também no mundo acadêmico".
Outra consequência crônica, e não menos grave, do semianalfabetíssimo científico é a forma filantrópica como alguns dos nossos políticos, administradores e gestores entendem o financiamento da ciência. A ideia de que, como sociedade, devemos “apoiar a ciência” (por mais bem intencionado que este apoio seja) ao invés de “nos apoiar na ciência” em direção a um desenvolvimento sustentável, promove o aumento da nossa dependência tecnológica (e consequentemente econômica) e reforça nossa identidade colonial, também no mundo acadêmico.
Finalmente, Cereijido aborda a questão de como se tornar cientista nesta realidade tão adversa. Salienta que ser cientista, em qualquer lugar do mundo, já é uma tarefa difícil e pouco reconhecida. Já na America Latina, a herança de uma visão social limitada e distorcida da ciência, afeta as universidades e, consequentemente, a formação dos nossos cientistas. Logo, se o desafio de fazer ciência já é uma loucura (como ele define) fazer ciência sem conhecê-la de forma profunda, sem entender seu contexto histórico, seu arcabouço metodológico e a real natureza das suas limitações (ou seja, sem pensamento, sem cérebro) é uma loucura dupla. Uma loucura que nosso sistema educativo, embebido desse obscurantismo semianalfabeto em ciência insiste em estimular e reforçar, em todos os níveis escolares, através do binômio autoridade-obediência. Lembremos que, uma ciência que ensina a obedecer à convicção de que ela está correta é incapaz de ensinar a questionar, explicar e pensar sobre fatos, dados e evidencias do porquê ela poderia, eventualmente, estar errada. Afinal, o maior inimigo da ciência não são as mentiras, mas as convicções.
Em síntese, as questões levantadas no livro trazem subsídios para justificar que pelo menos uma parte dos nossos esforços, enquanto sociedade, devam ser direcionados a mudanças na forma de ensinar e aprender ciência nas escolas e universidades, traçando percursos para uma aprendizagem cientifica mais reflexiva e critica, menos autoritária e obediente, portanto, mais paulofreiriana, emancipatória e libertadora (1). Enfim, uma educação científica que não nos convença a obedecer, mas, essencialmente, nos ensine a pensar. Talvez assim, a nossa América Latina tenha um futuro com mais cidadãos não-cientistas sabendo de ciência. E deixe, finalmente, de se conformar com formar bons pesquisadores e crie oportunidades para formar bons cientistas (“com cérebro”), socialmente relevantes e dispostos a transformar a nossa realidade. De verdade.
Nota:
(1) Freire, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma Introdução ao pensamento de Paulo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997
Sobre o autor
Graduado em Ciências Biológicas na Universidad Ricardo Palma (1996) e Doutorado em Ciências (Farmacologia) no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) em 2005. Pós-Doutorado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). Atualmente Professor Doutor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP).
